Na penumbra da sala, longe dos holofotes que coroam os artistas, encontra-se a cabine técnica do Cardamomo. É um santuário de luzes suaves e controles silenciosos, de onde se dirige a tempestade emocional do palco.
Lá trabalha Tato, o técnico de luz e som, o guardião da atmosfera do tablao. Hoje, não falamos com o técnico, mas com o artista que se esconde por trás da mesa de som.
Sentamos com Tato na cabine técnica, pouco antes do início do espetáculo. O ambiente é tranquilo, com o leve zumbido dos equipamentos.
Pintar com luz, sentir com o olhar
ENTREVISTADOR: Vamos falar sobre sua primeira tela: a luz. Para muitos, a luz serve apenas para enxergar. Mas em um tablao como este, parece que o papel dela é outro. Para você, qual é a verdadeira missão da luz em um espetáculo de flamenco? O que você quer transmitir com ela?
TATO: “Para mim, a verdadeira missão da luz é criar sensações colorindo o cenário e o artista, realçando suas intenções durante a dança. Tento alcançar aquele ponto em que a imagem se assemelha a um quadro de museu: sombras, brilhos, clarões, claro-escuro, penumbra, profundidade… a impressão.”
ENTREVISTADOR: Vamos falar agora de uma ferramenta muito poderosa: o canhão de luz de cima. Aquela única luz que desce do alto e isola completamente o artista. Em uma arte tão coletiva quanto o flamenco, como você decide que é hora de “desligar o mundo” e deixar um cantor ou dançarino naquela solidão iluminada? O que você quer que o público sinta?
TATO: “O foco superior — a ferramenta mágica ou secreta. É o mais preciso, embora exija que o artista esteja bem posicionado (risos). Digo isso porque, em momentos espontâneos, é difícil prever onde ele estará, e isso faz diferença.
A principal função para mim é iluminar o rosto e o tronco, criando uma sensação de levitação ou ascensão — como se ele fosse uma divindade. Quando usado sozinho, esse foco gera o ponto mais íntimo possível e, por isso, prende ao máximo a atenção do público. Depois vem a cor: cada frequência é um mundo em si.”
ENTREVISTADOR: E então temos a luz de fundo, algo quase ousado no flamenco. É uma arte que vive da expressão facial, e essa técnica a oculta completamente. Que poder tem para você uma silhueta? Em que momentos do espetáculo uma sombra pode dizer mais do que um rosto visível?
TATO: “A luz de fundo é uma aliada para criar incerteza, dúvida, provocar o medo do desconhecido — o medo humano de não ver o rosto. Mas, ao mesmo tempo, ela define artisticamente a silhueta ou o corpo humano, desenhando cada curva. Visualmente, é especial porque contorna a figura. Usá-la no início, em uma escobilla ou em uma pausa, e no final da dança pode ser muito eficaz. Ela também permite uma progressão artística ou rítmica da coreografia.”
ENTREVISTADOR: Além do branco da luz e da escuridão da sombra, existe a cor. O vermelho é quase sinônimo da paixão flamenca. Como você decide quando usar cor? Como sua paleta muda para acompanhar a alegria de uma bulería em contraste com a solenidade de uma soleá?
TATO: “O vermelho — um clássico do gênero. Uso o vermelho na soleá por bulería, na seguiriya e, às vezes, também na soleá. Simplesmente combina com esses estilos. É algo sinestésico ou indefinível e, ao mesmo tempo, nem sei exatamente por quê. De certa forma, acho que associamos essa cor ao flamenco quase de forma instintiva ou inconsciente — talvez também por causa da cor da rosa.
Para uma soleá por bulería, eu usaria vermelho com azul ou vermelho com verde, sempre com certa progressão, mas buscando bastante sombra e penumbra. Já para a alegria, o contrário: violeta, ciano, azul-turquesa… vibração no geral e muita luminosidade. Com a soleá, também procuro penumbra, mas com um tom muito quente, sombrio, como se fosse iluminado por velas — simulando uma casa antiga do início do século vinte.”
Esculpir o Som, Tecel o Duende
ENTREVISTADOR: Se a luz guia os olhos, o som vai direto ao coração. No palco há canto, violão, palmas, cajón, sapateado… um universo sonoro que poderia ser caótico. Qual é a sua filosofia para que tudo isso não seja ruído, mas uma conversa perfeitamente equilibrada?
TATO: “O primeiro passo é ter bons músicos que saibam se entender entre si (risos). Não se consegue um bom som se não houver simbiose e equilíbrio entre todos. A partir daí, é preciso boa acústica, bons equipamentos e, por fim, uma boa mistura de áudio e som. Claro que não se pode fazer isso sem entender o gênero — neste caso, o flamenco. Duvido que isso possa ser feito de forma matemática. Tentamos potencializar a música do elenco através do som, explorando até recursos criativos como mudanças no uso de reverb ou delay. O equilíbrio está no controle técnico — primeiro no palco, depois no sistema de som — aliado à criatividade no uso de timbre, dinâmica, estéreo e efeitos.”
ENTREVISTADOR: Você nos contou um segredo: o chão do Cardamomo é microfonado. Essa obsessão pelos detalhes é impressionante. Por que essa necessidade de captar o som da madeira? O que você quer que a gente sinta com o sapateado além do ritmo?
TATO: “A acústica arquitetônica que precisaríamos se não microfonássemos o chão seria como construir uma pirâmide (risos). Quero dizer que, para se apresentar ao público, o primeiro passo é ter um piso construído como um instrumento, para que ressoe naturalmente. Só então passamos a captar esse som. O que procuro ao detalhar o som é simular o que sente um bailaor ou bailaora ao sapatear, aplicando técnicas que permitam perceber microdetalhes. Isso faz com que o público sinta tudo mais de perto.”
ENTREVISTADOR: Dizem que um bom técnico de som equaliza como um escultor molda sua peça. Pode nos dar um exemplo prático? O que você “corta” ou “realça” no som de um violão suave, ou o que você “aprofundaria” na voz rachada de um cantor numa seguiriya?
TATO: “O equalizador é a nossa principal ferramenta para aumentar ou reduzir frequências de cada instrumento. Poderíamos falar sobre saturação tonal, mas isso não se aplicaria aqui (risos). Dentro da qualidade básica da música ao vivo, devemos entender que podemos moldá-la como se fosse uma peça de argila. Por exemplo, cada violão, cada voz, cada artista, cada local, cada sistema de som… tudo muda a cada dia. A dificuldade do som ao vivo está em saber o que fazer em cada momento sem hesitar. Em geral, começamos resolvendo eventuais problemas sonoros e depois tentamos traduzir as qualidades e nuances do artista da forma mais fiel possível.”
O Músico nas Sombras
ENTREVISTADOR: Tudo isso ganha vida ao vivo, onde nada está escrito. O flamenco é pura improvisação. Um cantor se parte, uma bailaora começa um zapateado inesperado… Você não pode seguir um roteiro. Como você vive essa tensão da cabine? Você se sente como mais um artista, improvisando com eles em tempo real?
TATO: “A tensão que essa incerteza artística cria é o que me mantém atento, e essa adrenalina é o que torna tudo divertido. Não digo que o estresse que isso gera às vezes seja agradável (risos), mas estar presente torna tudo especial e prazeroso.
Claro que me sinto como mais um artista, embora o nosso trabalho geralmente não seja reconhecido nem valorizado. A mixagem de som é uma arte muito complexa; sempre digo que o som não se vê com os olhos — por isso, é sem dúvida algo muito abstrato. Toda vez que opero o som no flamenco, me sinto responsável por traduzir as emoções em som, os traços e a união entre os músicos. É preciso uma espécie de sinestesia para fazer isso. Por exemplo, o movimento de uma bailaora ou a emoção que nasce em determinado momento do show pode definir quanto de reverb aplicar a uma voz, ou se um elemento deve soar suave ou agressivo. Acho que todos esses aspectos são definidos ou intuídos conforme seu entendimento do gênero, do artista e do momento.”
ENTREVISTADOR: E essa conexão com os artistas, como ela se constrói? Existe um plano detalhado antes de cada noite, olhares cúmplices durante o show, ou é pura intuição desenvolvida com muitas noites de duende?
TATO: “Ela se constrói tendo clareza de que o duende existe — e que ele nos une, sem dúvida. Mas também é preciso ter experiência, formação, trajetória, estilo… No ao vivo, tudo o que não for previamente preparado depende da conexão entre o operador e o músico. Só com o olhar já existe uma linguagem — por isso se diz que ‘se equaliza com os olhos’. Mas tudo isso se conquista desenvolvendo habilidades — e isso só se aprende fazendo, e fazendo shows ao vivo.”
Encerramento: A Magia Revelada
ENTREVISTADOR: No final da noite, quando o público explode em aplausos para os artistas no palco, em que momento você sente que “esta noite, o trabalho está feito”? Qual é o seu aplauso silencioso?
TATO: “Em geral, quando o público aplaude no final ou até mesmo após um simples encerramento, isso confirma que o show ou a ação transmitiu algo. E aí já sabemos que funcionou, que nosso objetivo — num trabalho como esse, onde o cliente precisa sair satisfeito — foi alcançado.
Mas há outra perspectiva possível: a do nível artístico ou técnico. Imagino que, como artistas que trabalham com música e dança, quanto mais o tempo passa, mais queremos crescer naquilo que fazemos. Quero dizer que, se o público que entra para ver o show não tem necessariamente conhecimento técnico, será que é mais fácil surpreendê-lo, já que a arte é algo tão subjetivo? O que emociona um pode não tocar o outro. Então sim, o show provavelmente sempre funciona, mas… será que devemos nos basear apenas na reação do público para saber se havia arte de verdade? Ou deveríamos escutar ou sentir nossa própria impressão para entender o quanto aquilo foi importante?”
ENTREVISTADOR: Para encerrar, Tato. Imagine que você pudesse sussurrar algo no ouvido de cada pessoa que entra pela porta do Cardamomo, para que não abram apenas os olhos e os ouvidos, mas também a alma para o seu trabalho invisível. O que você diria?
TATO: “Bom, sem brincadeira, eu diria: enquanto o show estiver acontecendo, não conversem entre si. Que desliguem os celulares para assistirem com os olhos e assim entenderem a progressão e o todo da dança. E que aplaudam se isso vier do coração… (risos).”
(O entrevistador agradece a Tato. A conversa termina exatamente quando os primeiros acordes da guitarra começam a soar para o teste de som — e a cabine de Tato volta à vida.)
Agora você conhece o segredo mais bem guardado do Cardamomo: o artista invisível chamado Tato. Sua luz não apenas ilumina — ela conta histórias. Seu som não amplifica — ele tece emoções.
Não venha apenas ver flamenco. Venha senti-lo como nunca antes.
A magia está te esperando. O palco está pronto. E a cabine também.